Por Cid Tomanik
Em meio ao esforço nacional para ampliar a infraestrutura e a segurança energética, o gasoduto Subida da Serra, que liga o Terminal de Regaseificação de São Paulo (TRSP) à rede de distribuição de gás na Grande São Paulo, tornou-se o centro de uma das mais relevantes controvérsias regulatórias do setor.
A disputa judicial instaurada na Ação Cível Originária (ACO) nº 3688, em trâmite no Supremo Tribunal Federal sob relatoria do Ministro Edson Fachin, busca esclarecer uma dúvida central: esse gasoduto deve ser enquadrado como infraestrutura de transporte, sujeita à regulação federal pela ANP, ou como rede de distribuição, sob competência estadual, exercida pela ARSESP?
A divergência se acentua quando se consideram as características técnicas da infraestrutura: são 31,5 km de extensão, com tubos de aço de 20 polegadas, operando a 70 bar de pressão, e capacidade para movimentar até 16 milhões de m³ de gás natural por dia.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) sustenta que essas especificações enquadram o duto como um gasoduto de transporte. Já a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (ARSESP), com respaldo do governo paulista, entende que a função essencial do gasoduto é integrar o TRSP à rede de distribuição da Comgás, sendo, portanto, um equipamento de distribuição.
A relevância do caso transcende o aspecto técnico-jurídico. O empreendimento, operado pela Comgás (grupo Compass), recebeu um investimento de cerca de R$ 500 milhões e entrou em operação em abril de 2024.
Desde então, segue regulado pela ARSESP, enquanto a ANP, por cautela institucional, comprometeu-se a não impor medidas coercitivas até a decisão final do STF.
O cerne da controvérsia é amplificado pela omissão regulatória da ANP no que diz respeito ao artigo 7º, inciso IV, da Lei do Gás Natural de 2021, que atribui à agência a responsabilidade de regulamentar os critérios técnicos para distinção entre gasodutos de transporte e de distribuição.
Tal regulamentação, entretanto, só começou a ser encaminhada, agora, em junho de 2025, com a abertura da Consulta e Audiência Públicas nº 01/2025. A minuta de resolução propõe estabelecer diretrizes objetivas sobre diâmetro, pressão e extensão para a classificação dos gasodutos, mas o atraso regulatório gerou insegurança jurídica e conflitos interpretativos como o da Subida da Serra.
Diante dessa lacuna normativa, a ARSESP exerceu, legitimamente, sua competência regulatória supletiva, com fundamento no art. 25, § 2º da Constituição Federal, ao autorizar o gasoduto como parte da rede de distribuição local.
Em um sistema federativo como o brasileiro, a regulação supletiva dos Estados não é apenas juridicamente válida, mas essencial à continuidade da prestação de serviços públicos essenciais.
A prática, aliás, não é inédita: há diversas distribuidoras de gás canalizado em entes da Federação operando trechos de rede com características técnicas semelhantes às do gasoduto Subida da Serra, com diâmetros expressivos, altas pressões e longas extensões, sob regulação estadual, conforme autorizados pelas respectivas agências estaduais.
Nos sistemas jurídicos de outros países, como Espanha, Alemanha e Estados Unidos, a diferenciação entre gasodutos de transporte, escoamento e distribuição consta expressamente na legislação setorial.
Essa previsibilidade normativa contribui para a segurança jurídica e evita disputas de competência como a que agora se impõe ao STF. Por isso, entende-se que, no Brasil, os gasodutos que já operam com base em autorizações válidas e função de distribuição local antes da futura regulamentação da ANP devem ser tratados como exceções, respeitando-se os atos administrativos que os legitimaram.
O processo judicial teve início com cinco audiências de conciliação realizadas no Núcleo de Solução de Conflitos do STF (Nusol), entre agosto de 2024 e junho de 2025. Todas fracassaram, inclusive a última, realizada em 23 de junho de 2025.
Com isso, o ministro Fachin deverá dar prosseguimento à instrução processual, ouvindo as partes diretamente envolvidas, bem como a ATGás (Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado), admitida como amicus curiae, devido à relevância sistêmica da discussão.
Um fator de tensão adicional foi a edição da Resolução ANP nº 511/2024, que reforçou o entendimento da agência federal sobre a natureza de transporte do duto e negou os pedidos de reconsideração da ARSESP.
A agência paulista contesta a validade da resolução, alegando afronta ao pacto federativo e à competência estadual para regular os serviços locais de gás canalizado.
Até que o STF se pronuncie, prevalece a regulação estadual, em respeito ao princípio da continuidade do serviço público e ao compromisso da ANP de não interferência.
O desfecho da ACO 3688 terá repercussões que vão além do caso concreto. O Supremo será chamado a interpretar os limites da competência regulatória no setor de gás natural, em especial diante da ausência de regulamentação clara pela União.
A decisão poderá afetar tarifas, investimentos futuros e o modelo de governança regulatória, além de influenciar debates sobre verticalização no mercado de gás, hipótese vedada pela própria Lei nº 14.134/2021.
Enquanto a decisão final não é proferida, o setor acompanha atentamente os desdobramentos desse caso emblemático, cujo impacto poderá ser sentido tanto na estrutura do mercado quanto no bolso do consumidor.
Para acompanhar o processo, consulte o portal oficial do STF: portal.stf.jus.br.