Por Cid Tomanik
O avanço regulatório promovido pela Lei nº 14.134/2021, conhecida como Nova Lei do Gás Natural, representou um marco importante na tentativa de estabelecer um ambiente concorrencial no setor de gás natural brasileiro.
Contudo, apesar dos avanços legislativos, o mercado de gás ainda carece de condições institucionais e operacionais semelhantes àquelas que permitiram a consolidação do mercado livre de energia elétrica no país.
A análise comparativa com a experiência brasileira no setor elétrico, bem como com os modelos de governança regulatória adotados em Portugal e Espanha, revela lacunas estruturais que precisam ser preenchidas.
No setor elétrico brasileiro, a existência de duas instituições-chave a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) permitiu a formação de um ambiente regulado, transparente e funcional. A CCEE realiza o registro e liquidação financeira dos contratos, contabiliza sobras e déficits, apura garantias e facilita a resolução de conflitos entre agentes.
O ONS, por sua vez, garante a operação integrada do sistema, assegurando a entrega física da energia contratada. Tais instituições oferecem previsibilidade, reduzem custos de transação e criam um “clearing regulatório” que sustenta a confiança dos agentes privados¹.
No mercado de gás natural, essas funções encontram-se dispersas ou inexistentes. A falta de um operador nacional independente da malha de transporte impede a coordenação eficiente dos fluxos de gás, dificultando a programação e a previsibilidade do suprimento.
Cada transportadora opera sua rede de forma isolada, sem transparência plena das capacidades, usos e contratos vigentes. Também não há uma câmara de liquidação contratual que possa centralizar registros, apurar desequilíbrios ou garantir neutralidade na execução de penalidades e garantias.
Nos modelos ibéricos, particularmente em Espanha e Portugal, a realidade é distinta. Ambos os países contam com operadores técnicos independentes do sistema gasista, como a espanhola ENAGÁS GTS e a portuguesa REN Gasodutos².
Além disso, está prevista na legislação a figura do “Comercializador de Último Recurso” (CUR), responsável por garantir o fornecimento em casos de falência de supridores, inadimplemento ou inexistência de contrato vigente. As tarifas de último recurso são reguladas e acessíveis, preservando o consumidor final e garantindo a continuidade do serviço³. Que falaremos em outro artigo.
O Brasil, portanto, carece de três pilares fundamentais já presentes nos modelos ibéricos e no setor elétrico nacional:
(i) um operador nacional da malha de transporte;
(ii) uma câmara de liquidação contratual e apuração de desequilíbrios; e
(iii) um fornecedor de última instância regulado. A ausência dessas estruturas compromete a eficiência econômica, fragiliza a gestão de riscos e dificulta a resolução ágil de conflitos.
Se o objetivo é consolidar um mercado livre de gás natural competitivo e confiável, a simples abertura legal é insuficiente. É necessário construir uma governança institucional robusta, inspirada nas melhores práticas internacionais e na bem-sucedida experiência brasileira no setor elétrico.
O futuro do mercado de gás no Brasil depende, sobretudo, da criação das condições operacionais que sustentem a liberdade contratual com segurança jurídica e estabilidade regulatória.
Referências bibliográficas
- BRASIL. Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004. Dispõe sobre a comercialização de energia elétrica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 mar. 2004.
- ESPANHA. Real Decreto 984/2015, de 30 de octubre. Regula el mercado organizado de gas y el acceso de terceros a las instalaciones del sistema de gas natural. Boletín Oficial del Estado, Madrid, 2015.
- PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro. Estabelece as bases gerais da organização e do funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural. Diário da República, Lisboa, 2006.
- CNMC. Guía Informativa para los Consumidores de Gas. Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia, Madrid, 2023.