Por Cid Tomanik
A abertura do mercado brasileiro de gás natural vem se consolidando como uma das agendas estratégicas mais relevantes da política energética nacional. Com a promulgação da Lei nº 14.134/2021, a chamada Lei do Gás Natural, o país deu um passo importante rumo à desverticalização da cadeia e à promoção da livre concorrência na comercialização do insumo.
Nesse novo contexto, um dos agentes com potencial de atuação ainda pouco explorado no Brasil é a instituição financeira, seja sob a forma de banco, gestora de ativos ou fundo de investimento.
Enquanto no cenário brasileiro ainda se discute a viabilidade prática e regulatória de sua inserção, nos Estados Unidos esse tipo de ator já é realidade consolidada há décadas, operando não apenas no mercado financeiro de gás natural, mas também no suprimento físico a consumidores finais.
Nos Estados Unidos, a presença de bancos e fundos no mercado de gás natural é facilitada por um arranjo institucional que equilibra liberalização, infraestrutura e regulação eficiente.
A Federal Energy Regulatory Commission – FERC, por meio de normas como o Code of Federal Regulations (CFR), Title 18, estabelece os critérios de acesso aberto à infraestrutura de transporte interestadual, obrigando os transportadores a oferecerem serviços em base não discriminatória.
Além disso, a atuação de comercializadores é amplamente desregulamentada no tocante à venda de gás, o que permite a presença de empresas com diferentes perfis, inclusive financeiras, operando livremente na oferta de gás para grandes consumidores e usuários finais.
A atuação dessas instituições se dá, em geral, por meio de subsidiárias comerciais específicas, devidamente registradas junto às autoridades federais e estaduais.
Um exemplo paradigmático é a Macquarie Energy LLC, subsidiária do grupo financeiro australiano Macquarie, que figura entre os principais comercializadores de gás dos EUA e mantém contratos com clientes industriais, data centers e empresas varejistas.
Outros bancos com histórico relevante na área são Goldman Sachs Energy Partners, JPMorgan Commodities e Morgan Stanley Commodities, todos com capacidade operacional para atuar tanto no mercado físico quanto financeiro do gás natural.
As empresas acima assumem responsabilidades de entrega física, gestão de portfólio, aquisição de capacidade de transporte e atendimento contratual direto a consumidores.
Do ponto de vista contratual, esses agentes oferecem produtos com ampla flexibilidade: contratos indexados ao Henry Hub (principal referência de precificação do gás natural nos EUA), estruturas de preço fixo, cláusulas de flexibilidade volumétrica (como “swing” e “ratchet clauses“) e instrumentos de hedge integrados.
A padronização contratual, a previsibilidade regulatória e a segurança jurídica do ambiente norte-americano são fatores que reduzem os riscos operacionais e viabilizam a atuação de agentes financeiros no suprimento físico de gás.
No Brasil, a Lei nº 14.134/2021 estabeleceu que a atividade de comercialização de gás natural será livre, sujeita apenas ao registro na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP (art. 29), sem necessidade de outorga prévia.
A regulamentação aplicável, notadamente a Resolução ANP nº 794/2019, estabelece os critérios para o registro de comercializador, que incluem a constituição de pessoa jurídica com objeto social específico, comprovação de capacidade financeira, nomeação de responsável técnico e envio de informações periódicas à Agência.
Ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro não veda e, até permite expressamente, que qualquer empresa, inclusive controlada por instituição financeira, atue como comercializadora de gás natural, desde que respeitados os critérios técnicos e regulatórios definidos pela ANP.
Ocorre que, na prática, a presença de instituições financeiras ainda é inexistente nesse papel no Brasil. Isso se deve a um conjunto de fatores estruturais: infraestrutura de transporte ainda limitada e concentrada, regras de acesso que ainda carecem de amadurecimento, poucos consumidores efetivamente livres, ausência de mercado secundário líquido, riscos contratuais elevados e, sobretudo, um cenário institucional em transformação.
Tais desafios não anulam a possibilidade jurídica, mas demandam que eventuais players adotem modelos progressivos, com boas práticas de governança, mitigação de risco físico e conformidade regulatória setorial.
A criação de subsidiárias comerciais por instituições financeiras brasileiras, estruturadas especificamente para atuar como comercializadoras de gás natural, pode representar não apenas uma diversificação de portfólio, mas uma estratégia de inserção em cadeias energéticas fundamentais para a transição energética.
Essas subsidiárias poderiam se associar a traders independentes, adquirir capacidade de transporte em leilões de Open Season, estruturar contratos com cláusulas de flexibilidade e fornecer gás diretamente a consumidores finais, especialmente os de grande porte já elegíveis à migração ao mercado livre.
A presença de bancos como comercializadores no Brasil também pode induzir inovação contratual, trazendo modelos como contratos híbridos (gás + energia elétrica), garantias estruturadas, instrumentos de derivativos autorizados pelo Banco Central do Brasil ou CVM, e soluções integradas de suprimento.
A atuação desses agentes pode contribuir ainda para a maior liquidez e transparência de preços no mercado, assim como para a expansão da base de consumidores livres por meio de ofertas mais competitivas e com maior suporte financeiro.
Portanto, o Brasil dispõe, ao menos juridicamente, dos instrumentos necessários para permitir a entrada de instituições financeiras no mercado livre de gás natural, seja como investidores, financiadores ou comercializadores diretos.
O desafio está em desenvolver condições estruturais semelhantes às do modelo americano, o que passa por uma regulação mais estável, expansão da malha de transporte, maior adesão ao mercado livre por parte de consumidores e, sobretudo, maturidade institucional das agências reguladoras e dos operadores do setor.
A experiência norte-americana mostra que essa presença não apenas é possível, mas desejável, na medida em que contribui para um mercado mais competitivo, financeiramente sólido e funcionalmente integrado.