Por Cid Tomanik
Com a entrada em vigor da Lei nº 14.134/2021 e a consequente reestruturação do marco legal do gás natural no Brasil, consolidou-se um modelo de mercado orientado à livre contratação entre agentes, no qual consumidores livres, comercializadores e supridores podem negociar condições de fornecimento de forma direta, à margem das tarifas públicas de distribuição.
A mudança exige uma abordagem contratual mais sofisticada, com especial atenção aos instrumentos que assegurem o adimplemento das obrigações pactuadas e a continuidade do fornecimento da molécula de gás. Nesse contexto, a adoção de garantias contratuais ganha centralidade como mecanismo de proteção jurídica, prevenção de litígios e estímulo à confiança entre as partes.
No mercado livre de gás natural, a obrigação de pagamento por parte do consumidor, independentemente da retirada efetiva do insumo, é frequentemente estruturada por meio de contratos com cláusulas do tipo take or pay ou ship or pay, nas quais a contraprestação financeira está atrelada à disponibilidade contratada e não ao consumo real.
Isso significa que o risco de demanda é, em grande medida, assumido pelo comprador, o que justifica a exigência de garantias que preservem a receita do supridor e assegurem a estabilidade da cadeia de fornecimento. Entre os instrumentos comumente utilizados para esse fim, destacam-se as cauções financeiras, as cartas de crédito emitidas por instituições bancárias, os seguros-garantia, as fianças e, em certos casos, estruturas fiduciárias associadas à receita do consumidor.
Do ponto de vista jurídico, tais garantias possuem natureza contratual acessória ou autônoma, e encontram fundamento no princípio da autonomia da vontade, respeitados os limites legais impostos pelo Código Civil e pela legislação setorial aplicável.
Sua presença confere previsibilidade à relação comercial e reforça a segurança jurídica dos contratos bilaterais celebrados em ambiente de mercado. A ausência dessas garantias ou sua adoção de forma insuficiente pode representar risco sistêmico ao setor, especialmente em cenários de inadimplemento ou insolvência do consumidor livre, com repercussões financeiras que podem se alastrar por toda a cadeia de suprimento.
Por outro lado, é igualmente fundamental que o contrato de fornecimento de gás natural contemple garantias do lado do supridor, a fim de proteger o consumidor contra falhas no abastecimento que possam comprometer sua atividade produtiva.
A interrupção injustificada da entrega do insumo, sobretudo em contextos industriais ou de cogeração de energia, pode gerar prejuízos relevantes ao consumidor, desde perdas materiais diretas até efeitos indiretos, como paralisação de processos, danos reputacionais ou descumprimento de contratos com terceiros.
Em tais hipóteses, o inadimplemento contratual pode dar ensejo à responsabilização civil do fornecedor, com fundamento no art. 389 do Código Civil, sendo admissível a reparação de danos emergentes e lucros cessantes nos termos do art. 402 da mesma norma.
A caracterização do lucro cessante como categoria indenizável exige a demonstração de nexo causal entre a falha no fornecimento e a perda de oportunidade econômica, bem como sua estimativa plausível com base em dados técnicos e financeiros.
Trata-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial consolidada, e que vem sendo reconhecida com frequência em arbitragens privadas e litígios envolvendo contratos de fornecimento de energia.
Justamente por isso, cláusulas que estabeleçam penalidades objetivas para casos de descumprimento do volume contratado, compensações financeiras automáticas e previsão de garantias de fornecimento são cada vez mais valorizadas nos instrumentos contratuais do setor.
Além das garantias contratuais entre as partes, o novo modelo de mercado também demanda soluções regulatórias que assegurem a continuidade do suprimento em situações excepcionais. Para isso, a figura do supridor de última instância surge como uma alternativa institucional relevante.
O supridor de última instância é o agente designado para assumir, temporariamente, a responsabilidade de fornecer gás natural a consumidores livres que fiquem desabastecidos em razão de falência, inadimplemento ou retirada do mercado de seus fornecedores originais.
A previsão desse mecanismo não se confunde com o papel da concessionária de distribuição nem viola a lógica de livre mercado, mas representa uma garantia sistêmica de continuidade mínima de fornecimento em caráter emergencial.
A atuação do supridor de última instância depende de regulamentação específica da ANP, devendo ser estruturada com critérios técnicos, prazos delimitados, remuneração adequada e cobertura de custos, de forma a evitar distorções concorrenciais e a criação de incentivos adversos.
A implementação exige ainda a compatibilidade operacional com as redes de transporte e distribuição e a definição de protocolos de acionamento que envolvam todos os agentes da cadeia.
Trata-se de uma medida que fortalece a credibilidade do ambiente de negócios e protege consumidores cuja dependência do gás natural se traduz em risco operacional relevante.
Dessa forma, pode-se concluir que, no mercado livre de gás natural, a estruturação adequada de garantias contratuais, tanto sob a ótica do pagamento quanto do fornecimento, é condição essencial para a eficiência dos contratos e para a mitigação de riscos relevantes.
A figura do supridor de última instância completa essa arquitetura ao prover uma camada adicional de proteção ao consumidor, sem comprometer os princípios concorrenciais que regem o setor. O fortalecimento desses mecanismos, aliado à evolução regulatória e institucional, será determinante para consolidar um mercado competitivo, confiável e juridicamente seguro.