Análise Crítica da Minuta de Resolução da ANP sobre Classificação de Gasodutos: Risco de Inconstitucionalidade e Conflito Federativo

Consulta e Audiência Públicas ANP nº 01/2025 – De 05/06 até 21/07/2025

Por Cid Tomanik

A minuta de resolução apresentada pela ANP para regulamentar a classificação de gasodutos de transporte, atualmente em consulta pública, revela um preocupante equívoco institucional com potencial de comprometer a autonomia dos estados na condução de sua competência constitucional relativa aos serviços locais de gás canalizado.

Ao pretender definir critérios técnicos de pressão, diâmetro e extensão como parâmetros para distinguir gasodutos de transporte, a ANP abre caminho para uma reclassificação indevida de infraestruturas que, na prática, integram malhas estaduais de distribuição.

A proposta parte de uma tentativa de uniformização normativa baseada em características físicas, desconsiderando por completo a diversidade das redes estaduais e o comando constitucional que atribui aos estados a titularidade dos serviços locais. Conforme estabelece a própria Constituição Federal, “cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação” ¹.

Trata-se de competência legislativa e administrativa exclusiva dos estados, cuja disciplina exige lei formal estadual, aprovada pelo respectivo Poder Legislativo, sendo inadmissível qualquer forma de regulamentação por meio de norma infralegal federal, como é o caso da minuta de resolução da ANP.

Portanto, toda e qualquer pretensão de classificar, reclassificar ou impor requisitos técnicos aos gasodutos de distribuição por ato administrativo federal é frontalmente inconstitucional.

A atividade estatal de regulação de serviços públicos deve observar não apenas os limites materiais da Constituição, mas também a forma estabelecida para o exercício da competência normativa, sendo vedada a criação de obrigações ou restrições mediante resoluções administrativas que extrapolem sua função meramente regulamentar.

Mais grave ainda é constatar que o legislador federal, ao aprovar a chamada Nova Lei do Gás, perdeu a oportunidade de fixar, de forma clara e inequívoca, os critérios técnicos dos gasodutos de distribuição, tais como diâmetro, pressão e extensão. Em outros ordenamentos, como na Espanha, tais critérios estão delineados diretamente na legislação federal, proporcionando maior segurança jurídica e distinção precisa entre os regimes de transporte e distribuição.

No Brasil, a omissão legislativa quanto a esse ponto essencial não pode ser suprida por resolução da ANP, sob pena de configurar invasão de competência e violação ao pacto federativo.

A crítica à proposta da ANP foi bem sintetizada por Zevi Kann, que afirma: “O que a princípio parece ser uma discussão ordinária, conduzida pela agência federal, pode ter como resultado uma indesejada ameaça de conflito federativo” ².

A observação é pertinente, pois a minuta permite que gasodutos de apenas 8 polegadas de diâmetro, mesmo sem grandes extensões ou relevância sistêmica, sejam classificados como de transporte, o que pode transformar trechos residuais de redes estaduais em ativos sob fiscalização federal.

Ainda segundo Kann, “pela proposta do regulador federal, todos os gasodutos de distribuição aprovados e implantados pelos estados desde 2021 passariam a ser fiscalizados pela ANP para verificar sua adequação ao novo regulamento”.

A medida em tela, além de tecnicamente inadequada, desorganiza todo o modelo regulatório vigente, compromete os cronogramas de revisão tarifária estaduais e interfere na análise de viabilidade de investimentos já aprovados pelas agências locais.

A Avaliação de Impacto Regulatório (AIR), conforme exigido pelo Decreto nº 10.411/2020, deveria conter uma análise detalhada dos efeitos econômicos e regulatórios da proposta.

No entanto, como alerta o mesmo autor, “o documento parece baseado na suposição de um País onde somente a regulação federal deva prevalecer, confrontando um condicionante básico do setor de gás canalizado: não existe hierarquia da regulação federal em relação à estadual”.

A adoção de critérios exclusivamente técnicos, sem considerar as funções práticas dos gasodutos ou sua inserção em contextos locais, revela uma compreensão parcial do arranjo federativo e dos próprios fundamentos econômicos e operacionais do setor.

A proposta da ANP, ao pretender reclassificar dutos curtos e de pequeno porte, cria uma complexidade operacional artificial e transfere aos consumidores finais os elevados custos associados à criação de city gates, odorização e demais obrigações típicas do transporte, desnecessárias e desproporcionais no caso de redes locais.

Como bem lembra Kann, “a proposta da ANP revela uma visão global equivocada do sistema, focada exclusivamente no transporte de gás, deixando o setor de distribuição como dependente de critérios não relacionados à sua competência constitucional” .

A constatação é reforçada pelo fato de que a infraestrutura de transporte no Brasil é insuficiente, e quem promoveu a interiorização do gás natural foram os estados, por meio de seus programas locais e concessões.

Diante de tudo isso, impõe-se uma revisão profunda da proposta. É necessário que a ANP reconheça que o papel do regulador federal não pode suplantar as atribuições locais, devendo promover a harmonização com base em diálogo, cooperação e respeito à Constituição.

Regulamentações como a ora proposta devem ser precedidas de análises técnicas sérias, de escuta qualificada dos entes estaduais e da consideração do impacto real nos usuários e operadores.

A proposta, como se encontra, representa um risco concreto de judicialização, paralisação de investimentos e desorganização do mercado de gás natural no Brasil.

___________________

1. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 25, §2º.

2. KANN, Zevi. Proposta da ANP para regulação de gasodutos representa ameaça de conflito federativo. Eixos, 2025. Disponível em: <https://eixos.com.br>.

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